terça-feira, 27 de março de 2012

Pequeno artigo sobre as idéias de René Girard

Mais amor e menos confiança.

João Sayad

Somos todos prisioneiros de algum paradigma. Basta conversar com o amigo marxiano, com o psicanalista ou com o homem religioso. Sempre encontrará a verdade profetizada nos textos de sua predileção—Marx, Freud ou as Escrituras. São clássicos pois sempre demandam e oferecem novas leituras.

Sou prisioneiro de René Girard—critico literário, antropólogo e filósofo. Girard é católico. Começou na literatura. E daí passou para a antropologia. Francês, desenvolveu carreira de scholar nos Estados Unidos. É pouco conhecido, do meu ponto de vista de leitor fascinado. E tem poucos prisioneiros engaiolados no paradigma que propõe. Citei-o para o Professor Luis Dantas que passou a admirá-lo como eu. Assim acredito que não estava muito errado ao ser fascinado por suas idéias. E por isto, escrevo este breve artigo em homenagem ao amigo Dantas.

A proposição básica de Girard é simples. Construímos a subjetividade- nossos desejos- através do mimetismo. Desejamos ser como as pessoas que admiramos ou amamos. Édipo é apaixonado pela mãe, não pelas razões apontadas por Freud. Mas porque a mãe é a mulher de um homem admirável, o pai.

Desejos são pulsões que se satisfazem imediatamente—uma ausência, tensão, satisfação seguida de tranqüilidade ou depressão. O desejo insaciável que permanece é o desejo pelo desejo do outro.

Desejo a mãe enquanto ela for mulher do pai. Se fosse rejeitada pelo pai ou se o desejo não fosse inacessível pela interdição ao incesto, não seria mais objeto de desejo. Sobra apenas o desejo pelo desejo do outro que é admirado e amado. Desejo insaciável.

Girard cita o capítulo inicial do Vermelho e o Negro de Stendhal. O pai de Julien Sorel passeia com o prefeito e deixa escapar que o filho será contratado como professor por outra pessoa, amiga do prefeito. O prefeito imediatamente contrata Julien Sorel como preceptor da filha. Sem esta “mentira de negociante” , Julien não seria contratado.

Este desejo pelo desejo do outro, esta vontade de possuir o que o outro deseja enquanto o outro a deseja foi chamado de rivalidade mimética. Não poderia ser chamada de inveja pois a inveja, que dizem ser verde, se refere ao desejo de destruir ou frustrar o desejo do outro. Por isto, rivalidade mimética.

A rivalidade mimética é uma estrutura de desejo que se apóia em três pólos—a coisa desejada, o outro que a deseja e o obstáculo entre o desejo e a coisa desejada.

Tem duas soluções – a violência. Ou o redirecionamento do desejo para uma terceira coisa “ excluída” – que seja objeto do meu desejo e do desejo do outro mas que não pertença a ninguém.

Girard “descobriu” o triangulo do desejo na literatura. E mostrou que quanto mais próximos os objetos do desejo ou os vértices do triangulo, maior a rivalidade mimética e a violência que acarreta. Madame de Bovary deseja o “glamour” da aristocracia e é um caso de violência que termina em suicídio e morte. Don Quixote deseja algo distante, a glória da cavalaria do passado e o amor cortesão.

Como antropólogo, argumentou que os ritos de violência sacrificial—o sacrifício de um escravo ou de um animal—tinham a função de “ extrair” a violência da sociedade e dirigi-la para um terceiro excluído—o bode expiatório. O rito sacrificial é o rito necessário para manter a ordem em qualquer comunidade.

Os ritos de violência sacrificial tem em equilíbrio instável. Se o objeto do sacrifício for um animal velho e de pouco significado como alimento ou animal de trabalho—o rito sacrificial extrairá pouca violência da comunidade que permanecerá conflituosa e violenta. Se o objeto do sacrifício for a princesa linda, filha do chefe da clã, rei ou cacique, a violência pode ser excessiva. E violência é contagiosa—a comunidade se destruirá em conflito e violência. O bode expiatório retira a violência do seio da comunidade e a dirige para este terceiro excluído. Que sempre oscila entre o excesso—contaminando a comunidade com o rito sacrificial Ou insuficiente, incapaz de controlar a violência da comunidade.

São três os princípios que orientam a visão de Girard —a rivalidade é tanto maior quanto mais próximos os vértices do triangulo. Quanto maior a proximidade, maior a rivalidade e maior a violência que a soluciona. Em segundo lugar, a violência é contagiosa, como podemos ver nos conflitos entre torcidas de futebol ou nas guerras entre nações que sempre correm o risco de se alastrar. Em terceiro lugar, o bode expiatório é o o objeto necessário para controlar a violência entre os humanos.

A visão de Girard sobre a construção da subjetividade a partir da rivalidade mimética pode ser aplicada em várias questões.

Na religião , Cristo e sua paixão representam esta solução antropológica. Cristo foi o único dos profetas judeus que anunciou e aceitou a morte como necessária para extrair a violência do mundo. “ Eu sou o Cordeiro de Deus” que vim salvar o mundo pelo sacrifício da minha vida. A missa e a Eucaristia representam o rito de sacrifício que salva o mundo da própria violência.

O rei é muitas vezes o bode expiatório que escapou do sacrifício. Por isto, reis são enterrados sob pedras, como nas pirâmides e nas covas do mundo ocidental. São vitimas arqueológicas sacrificadas por apedrejamento.

O governo, por outro lado, é sempre bode expiatório. Reis são coroados para serem degolados ou sacrificados para “ resolver” a violência decorrente da rivalidade mimética.

A aplicação da visão girardiana pode ser levada a casos triviais. Nunca foi possível a aliança entre sociais democratas e comunistas no século XX PT e PSDB são partidos rivais e muito próximos.. É mais provável uma aliança entre o PT e o PP de Paulo Maluf do que entre PT e PSDB.

O homem de relações públicas que seguisse a visão de Girard obedeceria regras muito claras. A rivalidade é maior com os mais próximos que admiramos (e por isto mesmo, também odiamos) e com quem convivemos.

Ao visitar a empresa familiar dirigida pelo filho do fundador—nunca perguntaria pelo seu pai nem pelo seu irmão.São vértices de conflito insuperável. Ao cumprimentar o Príncipe Charles não pergunte como vai a Rainha Elizabeth . Ao conversar com o Presidente da República não pergunte pelo segundo homem forte do governo ou por aquele que o ajudou a se eleger. Veja o conflito entre Figueiredo e Geisel, para citar um caso que já é histórico e pode ser mencionado sem melindres.

Na área de relações internacionais, cada pais tem relações cooperação e aliança com os vizinhos dos seus vizinhos. O Brasil é rival da Argentina e tem tradição de votar junto e cooperar com o Chile. França e Alemanha e duas guerras mundiais são outro bom exemplo. São Paulo não existiria sem o Rio—São Paulo é a negação do Rio. Uberaba não existiria sem Uberlândia, nem Tatuí sem Tietê.

Economistas imaginam que consumidores autônomos estão dispostos a trocar bens e trabalho de acordo com desejos bem comportados. Para Girard, a troca é impossível—se o vendedor está disposto a vender, o comprador não quer mais a mercadoria da transação. As trocas só podem se efetuar através de um bem excluído—que não pertence a ninguém e é desejado por todos—o dinheiro. Assim, diferentemente do que dizem os economistas, não foram as trocas que deram origem ao dinheiro, mas o dinheiro que deu origem e permitiu as trocas.

Seres humanos oscilam entre o amor e o ódio que o acompanha. Nossa sina é capturar o desejo dos que amamos muito. A solução? Um bode expiatório. Um desejo compartilhado por uma terceira coisa. E manter uma certa distância.

Se entendi bem os fascinantes textos de René Girard, o melhor dos mundos que podemos sonhar é um mundo que aspira a coisas transcendentais, Deus e a vida eterna, terceiros excluídos.

Ou o mundo do dinheiro onde todos os conflitos podem
ser resolvidos pela resposta a pergunta—“quanto é? “.

Ou um mundo de namorados. De pessoas que se admiram, mas mantem distância protocolar que mantenha a rivalidade mimética a nível suportável. Um mundo de mais amor e menos confiança.

Aula 9 O que é dinheiro

Esta aula se baseia em dois capítulos para um livro sobre o tema. Os textos são preliminares e sujeitos a revisão.

1-O dinheiro na semiótica.

O dinheiro é um mito. 1 Mito é um discurso. Discurso é a realização concreta da língua.
Papai Noel é um mito - história inventada para graça e encanto das festas de Natal Pode ser utilizado para induzir o bom comportamento das crianças. Há mitos de Atenas-Hércules, Édipo e mitos de Jerusalém. A afirmação é forte - homens realistas e ricos, homens pobres que trabalham de sol a sol para o sustento dos filhos são escravos de um mito, como os fãs de mitos da música popular ou crianças que acreditam em Papai Noel?
Não poderia definir dinheiro como signo, em vez de mito? Signo é a relação entre o significante (a expressão material das letras, b-o-i ou as ondas sonoras emitidas quando se fala boooi) e o significado boi, (o boi concreto ruminando no pasto). A palavra boi é um signo, a relação entre a expressão material boi (som ou escrita) e o boi. A palavra é parte de um sistema social, a Língua.
O dinheiro é mito e não apenas signo porque é signo de uma segunda língua, um signo de signo. 2 A primeira língua, no caso do dinheiro, diz que um cafezinho vale 3/2 pães com manteiga. Ou que a quantidade A da mercadoria a tem o valor de troca equivalente à quantidade B da mercadoria b. A relação entre A e B é o valor de A expresso por B, ou, o valor de B expresso por A. Dinheiro é a expressão que relaciona a quantidade de qualquer coisa, a , b ou c a um valor.
O batismo do dinheiro como mito está de acordo com a definição da Semiologia, a ciência dos signos.
O dinheiro organiza a atividade econômica, a escolha entre diferentes alternativas sob condições de escassez: a produção de mais canhões exige a produção de menos manteiga, consumo exige mais trabalho e custa menos horas de lazer. O preço expresso em dinheiro é utilizado nos cálculos de custos e receitas que maximizam o lucro e determinam a melhor decisão.
No caso do mito dinheiro, pedaço de papel que representa o direito de usar alguma coisa, a expressão material do valor. Forma e sentido brincam de esconde–esconde - o dinheiro é, às vezes, um pedaço de papel impresso, vazio de sentido, pura forma, e é, outras vezes, representante geral do valor, o poder de comprar qualquer coisa. Obedece a “física de um álibi - no álibi há um lugar cheio, onde o suspeito estava, e um lugar vazio, onde não estava” - é uma forma vazia, nenhuma mercadoria e um sentido cheio, qualquer mercadoria. 3 É virtualmente tudo, e efetivamente, nada, um pedaço de papel. 4 O dinheiro é mercadoria e ao mesmo tempo não é mercadoria: é um universal concreto, ou seja, “o animal” no meio de zebras, elefantes e girafas. 5
A nota de dez reais é um pedaço de papel impresso, com cores suaves e sóbrias. As antigas notas de cruzeiro assim como o dólar são decoradas com desenhos e imagens semelhantes com as que se poderia ver numa moeda metálica estampada. Hoje, a decoração da nota de real não se esforça para trazer a lembrança da moeda metálica. Mas foi batizada de “real”, o oposto do mito. Antigamente, nas notas de cruzeiro aparecia a expressão -“pague-se ao portador”. A SUMOC que emitia cruzeiros só pode pagar por dez cruzeiros, outros dez cruzeiros. Hoje, na nota de real está escrito “Deus seja louvado”. Deus também é mencionado no dólar que proclama “In God we Trust”. O dinheiro é um mito e a nota de dez reais, uma das suas formas.
O dinheiro, o significante do valor só cumpre a função de dinheiro se for escasso. Mas a expressão material do valor não é escassa. Um significado encontra muitos significantes. 6 Dinheiro de papel pode ser impresso a custo zero, pode ser reproduzido por bancos e outras instituições financeiras. Depósitos a vista representam depósito de dinheiro de papel ou de metal nos bancos, mas os bancos não têm o dinheiro físico depositado nos cofres. Emprestam este dinheiro para outros clientes. O cheque utilizado para pagamentos é aceito depois que o banco confirma a existência de fundos. Existe saldo na conta do cliente, mas não existe moeda suficiente no banco para que todos os depositantes troquem seus cheques por dinheiro. Os significantes do mito que representam escassez não são escassos, podem assumir múltiplas formas físicas, como cheques, notas bancárias, dívida pública e outros instrumentos financeiros aceitos em pagamento.
Dinheiro pode ser escasso quando não há escassez real. Quando há desemprego, é possível produzir mais canhões e mais manteiga ao mesmo tempo, mas o canhão continua tendo um preço positivo assim como a manteiga. O dinheiro transmite sinais de escassez quando não há escassez real. No mito, o significado deforma o significante, o valor deforma o dinheiro como seu representante.
Dinheiro cria equivalência entre coisas de grandeza diferentes - um cafezinho custa R$1,20 e um pão com manteiga R$ 2, 00, o salário mínimo é R$ 300,00. Se todos os preços forem fixados levando em conta o poder de compra, isto é, o nível médio de preço de todas as coisas, não existe dinheiro. Matematicamente, se o nível médio de preços é dado pela média dos preços de A e de B, e se os preços de A e de B são determinados em função do nível médio de preços, o nível médio de preços é indeterminado - não existe nem preço para o dinheiro nem dinheiro. 7
Para que exista dinheiro como unidade de contas é preciso que o preço do dinheiro seja aceito sem explicações pelo vendedor de A ou de B - um real tem que valer um real para alguém. Dólar é dólar, dinheiro é dinheiro, Papai Noel é São Nicolau que é Papai Noel. A tautologia é uma “mágica vergonhosa, que faz o movimento verbal da razão, mas a abandona imediatamente”. A tautologia é uma das figuras de retórica do mito8
O dinheiro pode ter qualquer valor - o cafezinho pode custar R$1,20 ou R$120,00 reais, o salário míninmo pode ser R$300 ou R$30 000,00. Mas precisa ter apenas um valor. Quem guarda dinheiro como reserva de valor pode entender de matemática, mas precisa acreditar que o valor do dinheiro que pode ter qualquer valor, tenha um valor só. Dinheiro é reserva de valor se for mito, isto é, se acreditarmos que o seu valor possa ser determinado por alguma coisa.
Dinheiro representa a possibilidade de comprar mercadorias que não podem ser estocadas ou mercadorias que serão produzidas no futuro. A dívida pública brasileira representa 50% do valor da produção nacional. Os detentores da divida pública acreditam que o seu dinheiro será capaz de comprar 50% do produto em alguma data futura. A moeda do depósito a vista está aplicado em títulos da dívida pública brasileira. Se não acreditarem, o dinheiro não será reserva de valor, nem mito, nem dinheiro.
Se o dinheiro servir apenas como meio de pagamento, como um passe escolar, ou uma entrada de cinema, será apenas signo - o pedacinho de papel representa o direito de tomar um ônibus, entrar no cinema ou fazer uma refeição. No caso do signo, o significado não distorce o sentido do significante. No mito, o conceito ( valor) deforma o sentido ( o dinheiro).
Mitos são produzidos por escritores, publicitários e, no caso do dinheiro, pelas autoridades monetárias. Os produtores do mito aplicam-se na produção da forma, o dinheiro, expressão material do valor. Se for consciente, é cínico, se bem intencionado, ingênuo, mas garante a existência do dinheiro.
A função principal do mito é transformar o que é contingente em natural. O dinheiro tem que parecer natural e não político. O dinheiro já foi ouro. Hoje, a taxa de juros é determinada com rituais científicos e com uma liturgia de reuniões de autoridades monetárias, divulgação de atas e transparência de procedimentos inexplicáveis. Antes, o dinheiro brasileiro valia porque era conversível a taxas fixas em dólar. A função do mito é despolitizar o conceito 9.O dinheiro mede o valor de todas as coisas “sem interferência política”, mede o valor natural. É ao mesmo tempo uma notificação- pague R$ 1,20 e uma constatação do valor- o preço é R$ 1,20.
A teoria monetária analisa o dinheiro como instituição eficaz e racional. De um lado, os economistas do “mainstream” defendem teoremas e leis que têm como científicas, como as únicas soluções comprovadas empiricamente. O dinheiro é tido como objeto natural com leis próprias. Desde o período que chamado de globalização financeira que se inicia com a administração Reagan nos Estados Unidos e se consolida com a a Queda do Muro de Berlin, os economistas- cientistas vencem o debate.
De outro lado, críticos afirmam que a economia não é uma ciência como a física ou a biologia. O método da economia é a retórica aristotélica onde vence ao melhor técnica de persuasão. Economistas são advogados que defendem o réu como princípio ético profissional. Ao revelarem o método, enfraquecem o próprio argumento (o advogado não revela ao júri que defende o réu por dever de ofício).10 Mas não é por isto são derrotados. São derrotados na política. A missão do mito é despolitizar o dinheiro, passá-lo de anti physis a pseudo physis”11 “ transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência, em eternidade.”12 A retórica dos economistas cientistas é persuasiva.
A teora monetária, como a mitologia, destrincha o mito, analisando forma e sentido separadamente. O mito é um todo inextricável, como um ovo. Podemos quebrar o ovo e analisar gema e clara. Não será mais um ovo. O resultado é trágico: uma teoria monetária sem dinheiro.
Se o dinheiro é mito, precisa ser estudado como um todo, como uma história ao mesmo tempo real e irreal, como forma, representante mítico do valor, e como mito, a presença viva do valor.13
O mito não pode ser desmitificado. Os economistas cientistas não erram quando se apresentam como cientistas. Os desmistificadores servem a verdade com um desserviço ao dinheiro.
A teoria monetária clássica, como veremos no próximo capítulo, se apóia sobre o dinheiro como significante vazio, produz um mito como o redator de publicidade,ao apresentar o dinheiro como meio de pagamento apenas..
A teoria monetária em geral se apóia sobre o significante cheio distinguindo sentido e forma, destrinchando o mito, como um mitólogo faria. .
As autoridades monetárias se apóiam sobre significante como um todo inextricável , história real e irreal, respondendo a própria dinâmica do mito.

2- O que é dinheiro.

As estatísticas do Banco Central definem dinheiro como saldo do papel moeda em poder do público mais saldo dos depósitos a vista nos bancos comerciais. Chama de dinheiro, todo o papel moeda em poder do público,com existência física e fora do sistema bancário (isto é, todo o papel impresso e metais estampados, menos aquela parte que ficou no próprio caixa do Banco Central e dos bancos comerciais, isto é,o que foi emitido e não está nas mãos do público não bancário) mais os depósitos a vista do público, dinheiro “espiritual” sem existência física, que representam moeda depositada no sistema bancário .Outras formas de dinheiro “espiritual” não são incluídas na estatística convencional. 14
A definição convencional não fala da essência do que é dinheiro. Apenas classifica o que pode ser chamado de dinheiro, como se definisse escoteiros pelas calças curtas. Começa muito perto do problema. Vamos começar de mais longe.
É preciso esforço para se surpreender com o que passa como absolutamente natural: todas as coisas estão associadas a um número -o preço- que se expressa em unidade de dinheiro e a partir do qual se pode trocar qualquer coisa por outra. Qual o sentido destas unidades monetárias, o dinheiro, e que diferença faz para a vida social?
A Economia e os economistas começaram discutindo o que explica cada preço- a quantidade de trabalho exigida para produzir a mercadoria, a utilidade atribuída às coisas relativamente a sua disponibilidade. Preços podem ser expressos em termos relativos: um trator custa dez toneladas de soja, um cafezinho, dois terços de um pão com manteiga.
A questão que analisamos é anterior: quaisquer que sejam as explicações para cada preço, por que são expressos em dinheiro? O que é a unidade de medida chamada dinheiro em termos da qual os preços são expressos? Um cafezinho custa R$ 1,20 e um pão com manteiga R$0,80. O que é R$ 1,20?
Chamamos de moeda, o pedaço de papel impresso ou o pedaço de metal estampado, de um lado cara, de outro, coroa, a forma física do mito. Os depósitos a vista representam depósitos destes objetos no banco. A palavra moeda vem do nome do templo dedicado a Junus Moneta, onde os romanos estampavam as moedas.
Preços, compras e vendas são feitas em moeda sem que ela precise estar fisicamente presente. A quantidade de dinheiro é maior do que a quantidade representada materialmente – não existe tanto papel moeda nos bancos com o mesmo valor do saldo dos depósitos a vista registrado pois os bancos emprestam o papel moeda , gerando mais depósitos em outros bancos que não têm contrapartida de papel moeda efetivamente depositado. Dinheiro é a unidade em termos de que os preços, os saldos bancários e todas as coisas podem ser expressas.
Batizamos a representação material do dinheiro de “moeda”, o significante ou a forma do dinheiro -a nota ou a moeda com existência física e percepção sensorial, que está no seu bolso ou na gaveta de casa. A moeda mais o dinheiro “espiritual” foram batizados de “dinheiro”.
O batismo é convenção arbitrária deste livro, pois não consta dos dicionários da língua portuguesa. Em inglês, dinheiro é “Money” e sua forma material “currency” ou “cash”. Em alemão, “Gelde”, para dinheiro como aqui definido e “Münze” para moeda. Em frances, dinheiro é “argent” enquanto moeda é “monnaie”. Neste caso o dinheiro tem o nome de um metal, a prata, invertendo a situação – e o mito é batizado com o nome da forma.
Nem a língua portuguesa nem outras línguas são precisas sobre as diferenças entre moeda e dinheiro por que a diferenciação não existe na vida real. No mito, um conceito, o valor pode se expressar por muitas formas.15
A mesma questão aparece em religião. Quem é São Judas Tadeu? O “santinho” ou o homem santo da história? Quem deve ser adorado? Os santos como idéias ou as representações em gravuras e esculturas? Moisés desce da montanha para repreender os judeus que idolatravam um bezerro de ouro, apesar da proibição explícita. Entre cristãos da Igreja Oriental Russa ocorreram guerras entre idólatras e iconoclastas. O Islã proíbe a representação em qualquer forma de Deus e Maomé. As mesquitas são decoradas com lindas letras e palavras do Alcorão (como se letras ou palavras não fossem imagens) Protestantes criticam os católicos e não permitem o culto a imagens, exceto o signo da cruz.
A idolatria é criticada em todas as religiões.16 O dinheiro é um mito- moeda (ou papel moeda) , dinheiro e valor formam um todo.
A troca de dinheiro por mercadoria ou o pagamento de uma dívida só se realizam quando o dinheiro é transferido fisicamente ou quando o banco reconhece a transferência “física”. Pode ser por escrituração (tinta sobre papel) ou o envio e registro de sinais eletrônicos (ions) que transferem saldos entre as contas das duas partes de uma transação. A expressão “quero ver a cor do dinheiro” é exemplo vivo de adoração ao “santinho”.
No passado, o papel moeda representou depósitos em ouro. Mas ouro e prata são, por sua vez, apenas formas ou significantes do valor. Valem porque são representantes do valor e não porque sejam escassos, úteis ou brilhantes.17 Assim como os bancos não têm em caixa o papel moeda correspondente ao total de cheques emitidos, pois emprestam grande parte para outros clientes, no período do padrão ouro, os bancos emitem notas representativas de depósitos em ouro em quantidade maior do que o ouro depositado nos cofres.
O cheque representa moedas e papel moeda depositado no banco. O cheque, de emissão privada e relativo ao depósito de um indivíduo ou empresa no banco é “menos real” (pois depende da existência de saldo e da confiança no banco) do que o papel moeda que você tem no bolso. Enquanto o mito permanece mito e inspira confiança entre bancos e clientes a multiplicação de significantes é inevitável.
Não é a pluralidade de formas- -papel moeda, depósitos a vista, dívida pública- que transformam o dinheiro em mito. O dinheiro é mito pois só será unidade de conta se um conjunto importante de agentes econômicos (os trabalhadores, ou os exportadores e importadores) acreditarem, sem explicações, que vale o que vale. É mito por que só cumpre a função de reserva de valor se os detentores de dinheiro acreditarem que o seu valor é fixo.

3- A sociologia do dinheiro.18

Do ponto de vista social, dinheiro é um sistema de valores, como a Língua. A Língua é um sistema social, para os sociólogos, público, para os economistas. Não é um ato premeditado ou pessoal.
Dinheiro é um sistema de valores e uma instituição, como o casamento, o estado, a igreja. “Instituição é matriz reguladora de condutas, conforma comportamentos e personalidades”.19 Instituições são conjunto de regras, apoiadas por recursos humanos e materiais que tem como objetivo preocupações humanas criticas, compreensivamente chamadas de valores--religiosos, éticos, políticos ou econômicos. Organizam e fornecem as regras e as condições de operação da vida social cotidiana.
A instituição não faz parte do cotidiano social, é a estrutura em que se enquadra o relacionamento social. Está excluída da vida social que regula e condiciona. A instituição é a “regra do jogo” que não faz parte do jogo, mas é condição para a sua realização. 20 O dinheiro é o coringa que representa todas as demais cartas ou mercadorias em jogo sem ser nenhuma delas.
Instituições são soberanas (do latim super), superiores a outras formas ou organizações sociais. Não há recurso contra as instituições, pois já são o último recurso, a ordem mais alta que regula outras formas de vida social. Não há instância superior ao Estado (incluindo o poder judiciário) a quem se possa recorrer. Dinheiro representa a forma final de pagamento. Não se pode requerer pagamento de qualidade superior ao dinheiro. O dinheiro redime todas as obrigações do devedor, do contribuinte, do suspeito que paga fiança ou reparações da nação derrotada.
Redimir tem a mesma origem de “redenção” que, em religião quer dizer salvação. A redenção ou a salvação é o objetivo final da vida e da morte. O dinheiro é a redenção final, a última etapa de todas as trocas--o que foi pago em dinheiro não pode ser pago por uma forma superior.
O dinheiro transforma todas as coisas em fungíveis, que podem ser trocadas. Indivíduos diferentes com gostos diferentes e vidas subjetivas diferentes estão dispostos a trocar coisas pelo seu valor expresso em dinheiro. O mundo definido pela cultura ocidental é quantificavel, expresso em dinheiro e em que tudo pode ser trocado.
O proprietário de dinheiro pode comprar ou vender o que quiser sem revelar a origem do dinheiro. O dono da mercadoria, automóvel ou jóia, pode vender a propriedade e receber papel moeda em troca, sem que o comprador precise dizer onde ganhou o dinheiro. Não é crime receber dinheiro roubado em pagamento. Crime é comprar mercadorias roubadas. Dinheiro é anônimo. A preocupação com “lavagem de dinheiro” reflete, e não contradiz, o anonimato do dinheiro. Sendo anônimo, é impessoal. Transações com dinheiro são impessoais e desprovidas de afeto. São únicas e finais. “Amigos, amigos, negócios a parte”.
Sem dinheiro, é difícil roubar. O rádio do carro ou a jóia são particulares e de proprietários identificáveis, o crime, pode ser descoberto. Sem dinheiro, não há prostituição. O dinheiro transforma a relação pessoal e íntima em relação impessoal e anônima.
Ninguém sabe quanto dinheiro possui o milionário ou o mendigo da porta da igreja, que pode ser milionário. O sigilo bancário só pode ser revelado com autorização do magistrado. O dinheiro possuído pelo indivíduo é invisível.
Dinheiro é portátil, pode ser transportado com facilidade pelo espaço e no tempo. A portabilidade é infinita com sistemas eletrônicos de pagamento e cartões de crédito.
Dinheiro é a instituição fundadora da liberdade individual. A sociedade de indivíduos livres do período moderno só existe na sociedade com dinheiro. Indivíduo é o portador de direitos reconhecidos por outros indivíduos e pelo Estado. 21O dinheiro permite ao indivíduo sem terras ou título nobiliárquico vender o seu trabalho. A sociedade de indivíduos livres de vínculos sociais rígidos (servidor de propriedade rural , artesão de uma corporação de ofício) só pode existir com a transformação do trabalho em mercadoria passível de ser trocada por dinheiro.
Anonimato e invisibilidade são indispensáveis à vida democrática. O dinheiro anônimo financia a oposição e o exílio. O financiamento do governo por impostos depende da existência de dinheiro. Sem dinheiro, produtos e serviços consumidos pelo governo deveriam ser confiscados ou produzidos por ele próprio.22
O dinheiro requer a presença de outras instituições: o estado eficaz, que faz valer as leis, a burocracia pública que controla e registra as transações monetárias.
A natureza do dinheiro é quantitativa. A avaliação do dinheiro é unidimensional- leite é medido em litros, terrenos em metros quadrados, mas o valor é medida de dimensão única. As economias capitalistas são dominadas pela abstração- a todas as coisas pode ser associado um número, o preço, todas as atividades humanas são passíveis de avaliação contábil. Não é por acaso que a Economia é conjunto de conhecimentos baseado em abstrações quantificáveis.
Na loja, o vendedor é solícito, quase áulico –“Posso ajudá-lo em alguma coisa?” O comprador observa vitrines displicente e presunçoso. Tem no bolso, dinheiro- potencialmente tudo. O vendedor tem somente mercadorias, sapatos ou relógios, que, com sorte, podem ser vendidos. O valor do dinheiro é maior do que o valor do sapato ou do relógio da vitrine. Dinheiro é potencialidade. A mercadoria vendida é, imediatamente, produto usado. 23
Na sociedade religiosa, Deus criou os homens, os animais e as plantas. Deus é o Criador e o não criado, a “identidade da identidade e da não identidade”. A existência de Deus torna a experiência humana transcendental e leve. Dinheiro mede o valor a todas as coisas. As coisas lucrativas, que rendem mais dinheiro tem existência “natural”. As coisas subsidiadas, tem existência “artificial” e temporária. Na sociedade religiosa, o sentido das coisas deriva de Deus, a explicação última da existência. Os sacerdotes interpretam o sentido da vida. A redenção está em Deus. Nas economias capitalistas, redimir é trocar por dinheiro. O dinheiro redime todas as coisas. Os economistas interpretam o sentido das coisas.
Na economia capitalista, a experiência humana é impessoal: não é preciso negociar gostos, compartilhar experiências para acordo de compra, venda, ou litígio. Na economia capitalista, a relação entre pessoas é separada pelo dinheiro.24 Não há diferenças que não possam ser resolvidas com a resposta a pergunta -“quanto e?”25 O dinheiro é apaziguador, torna negociável a presença do outro.

4- A arqueologia do dinheiro26.

Mitos não têm história real. A Teoria Monetária “deduz” uma história lógica onde o dinheiro foi criado para facilitar as trocas, realizadas, antes, em espécie. Trocas diretas ou escambos são complexos, pois cada mercador tem que encontrar outro mercador com a mercadoria desejada e disposto a trocar. Dez mercadores, com dez mercadorias diferentes geram 45 diferentes pares possíveis de troca (combinação de 10 dois a dois) que dependem da coincidência de desejos . Se uma das mercadorias é eleita como padrão de valor e meio de pagamento, as trocas podem ser feitas com apenas dez transações.
Do ponto de vista lógico, o dinheiro é a mercadoria selecionada entre as não perecíveis e de uso comum. Se o ouro é eleito, a moeda teria valor de uso e ao mesmo tempo, valor de troca . Um pedaço de pano, uma concha, ou um pedaço de metal comum estampado podem ser moeda se todos aceitam a convenção. Economistas definiram economia monetária como a economia em que apenas uma mercadoria (o ouro, um cereal ou qualquer outra) é utilizada como dinheiro. Economia não monetária é aquela onde todas as mercadorias são usadas como dinheiro. Esta é a moeda da teoria monetária clássica- o dinheiro é signo conveniente que facilita as trocas. É instituição eficaz e racional, criada para atender a necessidade dos mercados .
A partir desta história “deduzida”, Hume afirma que o dinheiro tem apenas valor convencional, é um “véu” que esconde a verdadeira intenção de compradores e vendedores, a troca de mercadorias cuja utilidade é percebida de forma diferente por compradores e vendedores. Em Ricardo, o dinheiro é a mercadoria com valor de uso escolhida convenientemente como unidade de conta e meio de troca.27
A história lógica é racionalização. A história real depende da tradução dos significados da vida social primitiva para os sentidos de hoje.
O que deve ser chamado de dinheiro em sociedades onde a produção é definida pelo chefe da comunidade, rei, sacerdote ou cacique? O que é dinheiro nas sociedades em que a parte da produção destinada a cada clã ou a cada indivíduo é determinada por razões religiosas, pela hierarquia social ou pela função desempenhada por cada participante da sociedade?
A arqueologia define como dinheiro o que desempenha as funções de dinheiro nas economias monetárias atuais. Nem sempre um único objeto cumpre todas as funções do dinheiro contemporâneo28:
-a função meio de pagamento é desempenhada quando a entrega de dinheiro cancela uma obrigação.
-a função unidade de conta é desempenhada quando o dinheiro é usado como a grandeza comum que avalia bens de grandeza diferente, laranjas e maçãs.
-a função reserva de valor se refere ao acúmulo de riquezas para que o indivíduo isolado possa dispor no futuro de bens que não podem ser estocados. 29
Em geral, não existem mercados e trocas nas sociedades primitiva. Quando existem tem importância reduzida, limitando-se a alguns produtos ou a trocas entre tribos diferentes.
O uso mais frequente do dinheiro é o pagamento de obrigações não comerciais, isto é, cancelamento de obrigaçõees como “multas” decorrentes de crimes que evitam a punição, “prendas”, côrte às mulheres ou sinal de respeito aos superiores. A punição pode ter origem sagrada ou ser devida por razões de prestígio e precedência social. Pagamentos são devidos pelas pessoas pertencentes a estamentos mais baixos, pelos leigos aos sacerdotes, por todos, aos deuses. O dinheiro assume a forma de forma de conchas, escravos, animais de tração ou de corte.
A origem histórica do dinheiro-meio de pagamento é sagrada, social ou política. Não começa com as trocas ou com mercados. Conchas, pedaços de pano ou outros objetos cancelam obrigações compulsórias, são presentes, demonstrações de gratidão, reconhecimento da superioridade social ou física de quem recebe, pagamentos que evitam a escravização ou afastam a ameaça a sua vida.
O dinheiro-unidade de conta aparece na constituição de estoques de generos de primeira necessidade (”staples”). Não é possível fazer orçamentos e controlar estoques de generos de primeira necessidade sem medir, comparar e contar os bens estocados. A moeda unidade de contas aparece nos grandes palácios ou na administração dos estoques de generos de primeira necessidade armazenados nos templos.Mas generos de primeira necessidade raramente funcionam como tesouro ou podem ser trocados. Tesouros estão associados a prestígio e status e não a meios de subsistência, que raramente fazem parte de tesouros.
O dinheiro utilizado para pagamento não pode ser utilizado como instrumento de troca, pois estaria pagando alguma coisa que não pode ser comprada. Os bens de primeira necessidade distribuídos pelo sacerdote ou cacique não podem ser trocados. Além disto, tesouro e riqueza são conceitos diferentes. Tesouro é composto de bens de prestígio e coisas valiosas como objetos cerimoniais, cuja propriedade implica em poder e influencia. O que é entesourado, raramente pode circular ou ser trocado. Excetuando sociedades em regiões muito ricas em ouro, metais preciosos não podem ser trocados por meios de subsistencia.30
Troca e dinheiro tem origens diferentes. Na vida interna da sociedade prevalecem processos políticos administrativos e processos de retribuição recíproca baseada em prestígio, aspectos sagrados e gratidão. Na vida externa, ainda que existam trocas voluntárias, existe também relações de reciprocidade, de hierarquia e guerras.
O que é pago, não é pago com bem que tem valor de uso nem o pagador recebe bens úteis em troca. O que é armazenado, é armazenado por razões sagradas ou de prestigio social, independentemente de sua utilidade ou valor econômico. O que é utilizado como unidade de conta , não se destina a trocas, mas a contabilidade dos bens de primeira necessidade armazenados no templo ou no palácio.
O dinheiro da sociedade primitiva não é invenção destinada a facilitar o funcionamento dos mercados. Não é convenção pragmática que facilita o comercio. Nem é mercadoria entre outras mercadorias, escolhida de comum acordo para facilitar trocas. São objetos eleito por razões sagradas, míticas e misteriosas. O dinheiro primitivo é parte da trama de significados sociais, religiosos e políticos. A origem do dinheiro é mítica.

5- A antropologia do dinheiro. 31

A teoria econômica e a monetária começam a partir do indivíduo--consumidor, produtor ou, na linguagem atual, agente econômico. Indivíduos são subjetividades autônomas, prontas e acabadas, conscientes dos próprios desejos e das possibilidades de satisfazê-los. Novamente um passo atrás, não no tempo, mas na análise de como se constituem as subjetividades e como dependem da vida social, isto é, dos outros.
O indivíduo só está plenamente constituído na sociedade capitalista. Na sociedade primitiva ou na sociedade feudal, o indivíduo não tem existência plena. As decisões “econômicas” – escolha entre alternativas dados os gostos subjetivos- pertencem ao chefe do clã, ao senhor feudal . O indivíduo não existe, muito menos o “homo economicus”. Analisar economicamente sociedades primitivas ou a sociedade feudal, onde o indivíduo não está plenamente constituído, é atribuir sentidos da economia capitalista a sociedades não capitalistas. Para Marx, mercadorias e trocas são lògicamente possíveis somente depois da existência do dinheiro.
Como se constituem estas subjetividades- as curvas de indiferença ou o mapa de preferências consistentes da Teoria Econômica? Desejos humanos originam-se da imitação e da rivalidade. O pai, chefe, ou líder inspiram admiração. Édipo deseja inconscientemente a mãe, não por motivos instintivos ou sexuais interditados, mas porque a mãe é a mulher escolhida pelo mais admirado dos homens, o pai. O desejo tem origem mimética.
Desejos são tensões que se satisfazem rapidamente. O desejo relevante é o insatisfeito. Os desejos humanos relevantes são de captura do desejo e das coisas desejadas pelos outros, isto é, desejos de reconhecimento. O desejo humano se transforma em rivalidade mimética ou inveja.
Este desejo só pode ser satisfeito com violência. Em palavras simples- “eu quero porque é seu”. A sociedade humana é dominada pela rivalidade mimética e essencialmente violenta. Só se constitui como sociedade se a violência for dirigida para fora, para um “terceiro excluído” ou para um bode expiatório.
Os ritos sacrificiais funcionam como práticas de controle da violência, através do redirecionamento da violência para a vítima externa. O sacrifício de animais, prisioneiros de guerra ou escravos desvia a violência para fora, para um objeto externo. A Paixão de Jesus Cristo, que se ofereceu como vítima sacrificial “Eu sou o Cordeiro de Deus”- pertence a esta visão antropológica. A Paixão de Cristo e o seu sacrifício transformam-No em objeto externo e transcendente que extrai a violência da comunidade dos judeus.
A ordem política e a instituição do poder político que monopoliza a violência segue a mesma lógica. O poder político é organizado a partir do sacrifício ritual. O rei descende de vítimas sobreviventes do rito sacrificial. Sobre ele se concentra toda a violência, ao mesmo tempo em que está excluído da sociedade, acima das relações sociais cotidianas. Quantos movimentos políticos não se originaram a partir de mártires? O governo é alvo de crítica acirrada da oposição e da imprensa não apenas pelo vigor da democracia moderna mas como alvo preferencial da violência ,como “bode expiatório”.32
Não há instância superior ao poder político. A instituição política resulta de processo de eleição e expulsão. É eleito como objeto da rivalidade mimética e colocado para fora e acima da sociedade, como soberano.
O controle e redirecionamento da violência social para um objeto externo tem equilíbrio precário dependente do grau de violência praticado e da distância entre a vítima da violência e a sociedade que pratica o rito sacrificial:

“Se há demasiada ruptura, entre a vítima e a comunidade, a vítima não poderá mais atrair para si a violência; o sacrifício cessará de ser “bom condutor” no sentido em que se diz que o metal é bom condutor de eletricidade. Se ao contrário, há excesso de continuidade, a violência passará demasiadamente fácil tanto num sentido como no outro. O sacrifício perde seu caráter de violência sagrada para se “misturar” com a violência profana e para se tornar em seu cúmplice escandaloso, seu reflexo ou mesmo uma espécie de detonador”( Renée Girard,La violence et le sacré,(Paris: Grasset,1972,pp.63-64).33

O rito sacrificial, pode, portanto, ser insuficiente ou excessivo como forma de controlar a violência derivada da rivalidade mimética.
“Sociedades organizadas são [portanto] eventos pouco prováveis”34, constituem situações de equilíbrio precário e dependente do controle instável da violência. A violência não dirigida para fora, através de guerras ou da eleição de bodes expiatórios, contamina a sociedade e instala o caos.
A subjetividade dos indivíduos da sociedade moderna se constitui a partir da rivalidade mimética, do desejo de possuir o que é propriedade do outro. A inveja é o sentimento básico na formação das subjetividades da sociedade de indivíduos. O consumidor autônomo, com curvas de indiferença estáveis ou preferências consistentes é na sua origem esquecida e inconsciente, movido pela imitação dos indivíduos que admira e pela inveja. A troca direta é impossível. A quantidade A da mercadoria A não pode ser trocada pela quantidade B da mercadoria B, pois os desejos que inspiram a troca por parte do proprietário de A são iguais aos desejos que inspiram o proprietário de B, que procura o reconhecimento de A.
O dinheiro é objeto externo- público, não premeditado, nem produzido por ninguém. Só com a intervenção do dinheiro as trocas são viáveis. Quando o dinheiro intervém no processo de troca, os indivíduos A e B desejam igualmente e por razões misteriosas a posse do objeto monetário, anônimo e impessoal. Só assim a troca é possível- quando todos desejam a mesma coisa que não é produzida por ninguém, o dinheiro.
A ordem mercantil se estabelece com a fundação da moeda– a moeda é eleita como objeto de desejo de todos por estar excluída das relações mercantis. Ela não é produzida no âmbito das relações mercantis, mas é originária da ordem sagrada ou pública. Não é o desenvolvimento das trocas que cria a moeda, mas a criação da moeda é que funda a troca. A moeda cumpre a função do rito sacrificial, dirige o desejo mimético e violento para “fora”, para o dinheiro- objeto excluído, anônimo, impessoal e “superior”. Ritos sacrificiais oscilam entre carência e excesso. O dinheiro sofre o mesmo equilíbrio instável. Às vezes, “retira excessivamente” a violência, tornando-se objeto preferencial de desejos intensos. Outras vezes, “retira insuficientemente”.A economia monetária oscila entre inflação e deflação. A estabilidade monetária é evento pouco provável.
A análise de Aglietta e Orlean coloca o dinheiro no centro da economia capitalista e não a mercadoria como em Marx. Mercados só existem onde há dinheiro. Não é desejada por que é expediente útil ou conveniente para facilitar as trocas. O indivíduo racional é atormentado pela inveja. Só o dinheiro pode apaziguá-lo.35



6- A economia do dinheiro.


A teoria monetária se debate para decifrar o mito. Insiste que o dinheiro é um expediente racional que reduz os custos de funcionamento dos mercados: o dinheiro é uma mercadoria como outra qualquer, escolhida racionalmente por conveniência de tamanho e disponibilidade, para ser meio de troca. É instituição racional e eficaz que reduz os custos de transação.
Antes das divergências, os pontos comuns da teoria monetária: do ponto de vista econômico, dinheiro é um ativo, uma propriedade aceita como instrumento legal que cancela definitivamente a obrigação de pagamento.
Sem dinheiro, não há macroeconomia. A macroeconomia agrega a produção física da economia, automóveis, canhões, manteiga, softwares e considera o agregado um produto só, o produto nacional. O produto nacional é plástico, flexível e invariante a própria composição. Pode ser exportado, importado, transformado em equipamentos duráveis que auxiliam na produção, isto é, investido ou não consumido, isto é, poupado. A plasticidade do produto nacional da teoria macroeconômica só existe se os produtos forem fungíveis, isto é, puderem ser trocados. Para que a abstração seja adequada é preciso, em primeiro lugar, que exista dinheiro, que mais um canhão possa ser trocado por menos um quilo de manteiga. Na Universidade de Chicago, a disciplina Macroeconomia é chamada de Moeda, sugestivamente. Para que a fungibilidade exista não basta a existência de moeda. É preciso que a economia seja suficientemente diversificada e que a recomposição da produção seja feita a preços relativos que não variem muito. O Produto Nacional de uma república de bananas que produz apenas bananas e importa todo o resto é abstração inadequada. O dinheiro desta economia, como veremos mais tarde, só pode ser representante do valor e mito se for equivalente ao dinheiro de outro país. Caso contrário, o dinheiro da república de bananas será um signo, um vale-bananas e não um mito.36 Macroeconomia é uma abstração adequada apenas para economias monetárias e com produção diversificada e complexa.
Dinheiro é o ativo mais líquido da economia. Liquidez é a característica que permite que a moeda “liquide”, isto é, cancele ou acabe com a obrigação. Liquidez é a diferença de preço auferida com o tempo decorrido depois que uma mercadoria é posta a venda. O tempo aumenta preço porque mais compradores conheçam a oferta de venda e mostram interesse. Um apartamento posto a venda hoje, será vendido por pequena fração do preço desejado se vendido amanhã, fração maior se for vendido daqui a um mês e pelo preço de mercado, depois de dois anos, por exemplo.
Liquidez é também, o “estado da matéria dos corpos que não têm forma própria mas cujo volume é invariável ou cujas forças de coesão intramoleculares são mais fortes do que os gases e mais fracas do que os sólidos.”37
O dinheiro mantêm o mesmo valor depois que é oferecido para “venda”, isto é, para pagar alguma coisa. O dono do dinheiro procura mercadoria para comprar anunciando que tem 100 reais para gastar. Os 100 reais valem 100 reais durante todo o tempo que a oferta de “venda” do dinheiro for válida. Não há ganho de preço do dinheiro com a passagem do tempo. Não é preciso “esperar” o comprador de moeda que aceite o 100 reais como 100 reais. Cem reais são cem reais. 38 A tautologia é uma figura retóricas do mito- dinheiro é dinheiro. 39
Dinheiro é o ativo mais líquido nas duas definições. Cancela ou liquida irrevogavelmente a obrigação.Como a água vaza e penetra por qualquer fresta todos os espaços da vida social.
Dinheiro é produzido a custo médio e marginal iguais a zero. O custo do trabalho gráfico ou da fundição de metais não guarda relação com o valor do dinheiro.
Dinheiro é único.As trocas só serão mais fáceis se o dinheiro for único. A unicidade depende da soberania do Estado que define espaço legal e jurídico homogêneo. Crises monetárias, inflação e deflação, são situações decorrentes da concorrência de um dinheiro com outros dinheiros- o dinheiro “espiritual” ou de outras nações.
Conseqüência: os mercados monetários são difíceis de controlar O dinheiro-fungível, invisível, anônimo, impessoal e líquido invade todos os mercados, desobedece todas as interdições e contorna as regulamentações. A regulamentação dos mercados monetários e financeiros é jogo permanente entre as autoridades monetárias e a engenhosidade os mercados. A atividade ou investimento proibidos oferecem taxas de retorno maior, pois os recursos que se dirigem a ela, agora, são limitados. A rentabilidade maior atrai o setor financeiro que inventará novas formas legais e financeiras de investir o dinheiro na coisa mais rentável, sem desobedecer formalmente a legislação.
A globalização é o exemplo vivo da capacidade de o dinheiro passar por entre as barreiras legais e nacionais. O crescimento da oferta de dólares e da demanda de financiamento para o comercio exterior nos anos 60 fundou o mercado de eurodólares, isto e, de ativos financeiros expressos em dólar e transações expressas em dólar, realizadas em território europeu, a salvo das leis e regulamentações americanas.
Com custo zero de produção, a tendência do setor privado a produzir dinheiro é incontrolável. A produção de significantes privados para o dinheiro é chamada de alavancagem no jargão do sistema financeiro. Um quilo de ouro depositado no banco do século XIX dá origem a documentos que representam o ouro depositado. Estes documentos (notas bancárias ou moeda-papel que representam o ouro depositado no banco) se transformam em dinheiro espiritual e são dinheiro- com custo zero, o mito produz outros mitos até a próxima crise monetária exigir a presença da forma original como representante confiável do conceito.
Agora, as divergências. O dinheiro é apenas sentido que aparece claramente na forma, um objeto físico com valor específico ou é um mito, forma que esconde o conceito?
O prof. Friedman, o mais brilhante monetarista da Universidade de Chicago, propôs reservas de 100% para o sistema bancário. Bancos tem que manter em caixa toda a moeda depositada e só poderiam emprestar sabendo como e quando os depositantes retirariam a moeda do banco. O depósito de 100 reais por um mês pode ser emprestado por um mês. O depósito de 100 reais a vista não pode ser emprestado. O dinheiro é apenas forma, um pedaço de papel ou uma moeda metálica. Os mercados monetários poderiam negociar apenas com uma forma de dinheiro, com um significante. Mitos de mitos seriam proibidos.
Não haveria bancos se os bancos não tivessem a confiança dos depositantes. A confiança dos depositantes induz inexoràvelmente a multiplicação dos depósitos. Sem nenhuma alavancagem, não haveria bancos, mas cofres. A proposta de reservas de 100% só seria eficaz se o dinheiro fosse um objeto físico, não anônimo, nem invisível nem líquido. Ou seja, se o dinheiro fosse uma mercadoria física com título de propriedade. Não seria dinheiro.
Se o dinheiro é apenas instrumento de troca, um ativo líquido que facilita as trocas, expediente e não mito, se os agentes econômicos trabalham, produzem ou investem apenas para obter mais bens considerados necessários ou úteis, o dinheiro é apenas uma “passagem”, um “intervalo” na circulação permanente de mercadorias, o objetivo final da atividade econômica- um signo. Este é o dinheiro dos clássicos e de seus sucessores, monetaristas e novos clássicos.
O dinheiro sob esta definição não é um mito. É um ticket transporte ou vale-refeição, cujo preço depende fundamentalmente da quantidade de vale-refeição emitidos, isto é, da quantidade de dinheiro existente. Ou um véu transparente que ilude ou oferece informações “veladas” , transitoriamente, durante curtos períodos de tempo, quando os preços expressos em dinheiro (preços nominais) variam diferentemente dos preços relativos ou reais por causa da inflação ou da deflação. O objetivo final da atividade econômica é real – só oisas reais, roupas, geladeiras, máquinas satisfazem o desejo dos agentes econômicos. O dinheiro inflacionado ou deflacionado atrapalha apenas temporariamente por enganar algumas pessoas por algum tempo. Rapidamente a realidade se manifesta e o valor distorcido volta ao valor real.
Na definição de keynesianos e suscessores, o dinheiro é um mito. É reserva de valor, porto seguro para a renda e riqueza da economia. O dinheiro dos keynesianos é retido por muito tempo, por causa da incerteza, como na armadilha da liquidez da teoria keynesiana. Por que comprar ações agora se os preços das ações vão cair? A propriedade de dinheiro representa um desvio de recursos privados que poderiam ser investidos. Empresários precisam decidir entre aplicar seus lucros em mais moeda ou na compra novos equipamentos industriais. A rentabilidade dos investimentos depende dos riscos de variação dos preços de cada produto por causa de inovações, concorrência de novos produtores e novas tecnologias. Dinheiro é o porto seguro, o ativo que pode ser transformado em qualquer mercadoria em qualquer tempo e concorre com vantagens contra os investimentos. É o concorrente desleal dos investimentos produtivos. A retenção de moeda reduz os investimentos e e congela os excedentes da economia em coisas não produzidas, a moeda, que não gera emprego. O dinheiro dos keynesianos é o mito fundador da economia capitalista. Talentos, suor e trabalho são sacrificados em seu nome. Só onde o consumo pode ser adiado, sem comprometer a subsistência, só onde a riqueza real acumulada é grande, o dinheiro é mito. Apenas as sociedades prósperas e ricas têm dinheiro.
A visão diferente de clássicos e não clássicos pode ser ilustrada através da análise de duas propostas radicalmente diferentes sobre a quantidade ótima de dinheiro.
Se a moeda é ativo com custo zero de produção, a quantidade ótima de moeda que cada agente econômico deve reter é a quantidade que satisfaz totalmente as necessidades de liquidez. Cada agente deveria usufruir ao máximo as vantagens de liquidez da moeda.40 Entretanto, cada agente retêm quantidade menor de moeda, pois quem guarda moeda deixa de ganhar juros nominais pagos aos depósitos de poupança, às debêntures, aos bonds ou aos dividendos que as ações pagam. Reter moeda tem custo de oportunidade dado pelas taxas de juros nominais. Taxas de juros nominais positivas introduzem uma distorção pois induzem à economia de moeda, que não deveria ser economizada, pois não custa nada produzi-la.
A diferença entre quantidade efetivamente retida de moeda e a quantidade ótima, pode ser reduzida através de deflação igual a taxa de juros real da economia. Neste caso, a taxa de juros nominal é zero e a quantidade de dinheiro retida por cada agente para financiar as despesas é ótima, pois o custo de reter moeda é nulo. Assim, a “economia” privada de moeda é distorção social que poderia ser resolvida pela deflação41. Para os monetaristas, o dinheiro é um mito que precisa ser desmistificado.
A partir da mesma lógica, a inflação induz cada agene econômico a “economizar” ainda mais moeda, pois eleva juros nominais. Além disto, todos os anos precisam reter mais moeda para manter caixa proporcional aos preços maiores que a inflação provoca. A quantidade adicional de moeda que todos precisam guardar todos os anos por causa da inflação foi chamada de “imposto inflacionário”. Representa financiamento adicional e não autorizado do governo.42A inflação é problema grave por causa do imposto inflacionário, tributação não autorizada pelo Congresso. Parece muito pouco para explicar por que a inflação derruba governos, cria lideranças políticas e é considerado o problema principal das economias contemporâneas.
Em períodos de inflação, os bancos encontram formas de contornar as regulamentações que impediam que pagassem juros sobre depósitos a vista . A moeda depositada rende juros como outros ativos financeiros e a “distorção” inflacionaria acaba. Se o dinheiro depositado rende juros, a inflação deixa de causar os custos mencionados pelos monetaristas exceto para as pessoas que não podem utilizar o sistema bancário. No caso americano, apenas o dinheiro ilegal, decorrente de atividades criminosas não poderia ser remunerado com juros nominais em depósitos bancários. O conceito de imposto inflacionário transforma a inflação em problema fundamental para a Máfia e traficantes de droga ! 43
No Brasil, a população de baixa renda não tem acesso ao sistema bancário e paga imposto inflacionário. Esta população tem “encaixes monetários” tão pequenos que os bancos não aceitam seus depósitos pois os custos de administração são maiores do que os retornos que o banco pode obter emprestando este dinheiro. A população pobre usa dinheiro apenas para pagar o ônibus ou o almoço fora de casa. As despesas de manutenção são feitas logo no dia de pagamento para evitar o aumento de preços da inflação. O imposto inflacionário poderia ser evitado se usassem passes de transporte e vales- refeição que não perdem valor durante o mês.A inflação pode ser resolvida por solução local e prosaica. “ Que anti clímax!”44
Conclusão- se o problema causado pela inflação é o imposto inflacionário, a inflação é restrito a Mafia e aos traficantes de droga nos Estados Unidos e pode ser resolvido no Brasil, por passes de transporte urbano e vales- refeição. Não há razão suficiente que explique porque a inflação derruba governos, causa mal estar, é uma crise, Esclareceram o mito e o dinheiro deixou de ser dinheiro.
Até os anos 80, política econômica americana apresenta ciclos de dois anos: nos primeiros dois anos do mandato presidencial, a inflação é baixa e nos segundos dois anos, alta. Se o imposto inflacionário é o problema, como querem os monetaristas, porque a política econômica aceita inflações maiores às vésperas da eleição? Por que governos republicanos produzem inflações menores do que os governos democráticos ?45 Por que a inflação é preocupação de conservadores – são mais sensíveis as perdas dos pequenos depositantes que pagam imposto inflacionário? Porque os bancos, sócios do governo neste imposto, o FMI e o Banco Mundial são preocupados com a inflação, enquanto a ONU, a Fao e outros organismos estão preocupados com fome, miséria e desemprego ? Por que no Brasil a inflação era o tema da UDN e não do PTB ou PSD? Por que Revolução Militar alega que derrubou o governo Jango para repor a ordem ameaçada por uma inflação projetada de 60% ?Por que no Brasil e em vários paises da América Latina, os governos bem sucedidos no combate a inflação nos últimos vinte anos tiveram apoio político excepcional, ainda que o fim da inflaçção tenha sido acompanhado de desemprego?
A visão keynesiana é simétrica e oposta. A retenção de moeda deve ser penalizada. A moeda que tomou parte em alguma transação é carimbada com a data da transação. Moeda carimbada não perde valor. Moeda sem carimbo valeria menos todos os anos. A moeda ideal seria um produto homogêneo e perecível depois de determinado tempo.
O mesmo resultado poderia ser obtido pela inflação. A inflação traz custo adicional aos detentores de moeda e reduziria a competitividade da moeda relativamente aos investimentos em ativos reais (novas máquinas ou novos edifícios). Entretanto, no caso dos keynesianos e sucessores a inflação é ameaça ao instituto fundamental da economia capitalista e não correção do preço de uma mercadoria e não pode ser utilizada pois ameaça a ordem fundamental da economia. 46
Esta a diferença entre o dinheiro mito e o dinheiro decifrado. No primeiro caso, a moeda é simplesmente uma mercadoria que facilita as trocas e a quantidade ótima de moeda é determinada em função do seu custo de produção. O preço da moeda assim como o preço de qualquer mercadoria depende da quantidade produzida.
No caso de Keynes e sucessores, a moeda é o ativo preferido, pela inexistência de risco e pela liquidez. O dinheiro reduz os investimentos e sua atratividade deve ser reduzida.
Clássicos e monetaristas decifram o mito e falam de um dinheiro que não é dinheiro, de inflação que não ameaça a ordem social e de uma teoria onde não há dinheiro. Keynesianos e sucessores falam do dinheiro como mito fundamental da economia capitalista que trabalha para acumular dinheiro e não coisas reais, como casa comida e saúde. O dinheiro não pode ser decifrado.


Capítulo 2


I-Introdução.

A primeira estrofe dos Lusíadas- “As armas e os barões assinalados”- repete o primeira estrofe da Eneida de Virgilio- “arma virumque” ou as “armas e os homens”- escrita mil e quinhentos anos antes. A Eneida conta a história da fundação de Roma, a partir da derrota de Tróia, cantada em verso por Homero mil e quinhentos anos antes.O conflito, a conversa e as controvérsias giram sempre sobre os mesmos temas. Somos prisioneiros de um “tecido de citações”. 47
A teoria monetária está submetida a mesma sorte. A discussão parece circular, passando sempre pelos mesmos lugares. É espiral - olha os mesmos lugares sob ângulos diferentes que, entretanto, se repetem.
Tomamos como ponto de partida a teoria e política monetária no final do século XIX durante a segunda revolução industrial, na Inglaterra no início do período Vitoriano, quando se consolida o Império Britânico. Poderíamos começar no século XIII e XIV no período da chamada Revolução Comercial quando as cidades do norte da Itália, do norte da Europa e as cidades espanholas se desenvolvem com o comércio de mercadorias trazidas do Oriente distante ou produzidas pelos artesãos destas cidades. Começamos mais tarde porque dinheiro, Estados nacionais e o capitalismo já estão consolidados.
O dinheiro só pode se transformar em mito na sociedade próspera, onde a produção de bens necessários a sobrevivência – saúde, alimentação, habitação e segurança – deixaram de ser a preocupação fundamental. Em economias primitivas ou em economias não capitalistas, o dinheiro não pode ser mito. Os Yanomani não usam dinheiro. Os mitos de sociedades primitivas apaziguam as forças da natureza, confortam o medo do inexplicável e sobrenatural. Não arriscam a própria sobrevivência, trabalhando com imagens que não sejam expressão direta do que precisam para sobreviver. Têm vida material singela e não acumulam dinheiro como representante de consumo ou riqueza futura. Dinheiro é produto de luxo. 48 :
“Estatisticamente, os mitos estão à direita. As palavras dos ricos, [poderosos ou opressores] são multiformes, sutis, dispondo de todos os graus de dignidade. A direita tem a exclusividade da metalinguagem e do mito. O opressor quer conservar a existência sem aparecer. O oprimido não usa senão uma palavra, a da sua emancipação. O oprimido faz o mundo: quem trabalha para sobreviver não pode se dar ao luxo de produzir mitos. As imagens têm que corresponder às coisas diretamente. A linguagem do opressor visa a eternizar o mundo. A do oprimido, a transformá-lo.” 49.
A origem sagrada e irracional do dinheiro das sociedades primitivas não contradiz esta proposição: o dinheiro daquelas sociedades não organizava a produção, servia apenas para cancelar obrigações sociais, religiosas ou militares. Do ponto de vista material, era usada para medir estoques de bens de primeira necessidade mantidos nos templos. O dinheiro mito, que organiza a vida material da sociedade, só existe após determinado grau de riqueza material e desenvolvimento das instituições financeiras.
O debate em espiral começa com os clássicos, cujas obras mais importantes datam do final do século XVII e século XVIII. Evolui para os neoclássicos que completam e resolvem problemas da teoria dos antecessores. Do final da Grande Guerra em 1918 até 1945, o mundo vive longo período de violência, transformações políticas, crises monetárias e desemprego que se resolve apenas com o inicio da Segunda Guerra. O dinheiro - teoria e política monetárias - é o centro do redemoinho de violência, guerra e crises financeiras que resultam na publicação da Teoria Geral dos Juros do Emprego e da Renda, enquanto a realidade se impõe na prática “keynesiana” aos governos de Franklin Roosevelt, nos Estados Unidos, na política econômica do nazismo e na política de Getulio Vargas no Brasil.
Depois da Segunda Guerra, o movimento espiral continua, com nomes que repetem os do período anterior. A revolução keynesiana é reinterpretada pelos neoclássicos (diferentes dos neoclássicos de antes), por neokeynesianos e por monetaristas (que recuperam o pensamento dos neoclássicos do seculo XIX). Nos últimos vinte anos são substituídos pelos novos clássicos, novos monetaristas e novos keynesianos.


2- A teoria monetária clássica: período dourado da Teoria Quantitativa da Moeda, de 1870 a 1914. 50

Os clássicos - Mill, Jevons e Bagehot - tratam de todos os temas permanentes da teoria monetária. É possível que os filósofos digam a mesma coisa sobre Sócrates, Platão, Aristóteles e os sofistas. Nas artes e na literatura, a escola clássica procura o equilíbrio, a harmonia e o natural. Clássicos (autores dados em classe) são reescritos pelos leitores de todas as gerações. Podemos nos surpreender com a vida presente em textos tão antigos ou nos desesperar com a monotonia do horizonte.
O personagem da teoria econômica clássica é como as figuras dos quadros e esculturas clássicas um homem tranqüilo, harmônico e dominado pela razão. Trabalha para viver, realiza trocas para obter os bens e serviços necessários a sua sobrevivência. Não se ilude com o dinheiro.
É diferente dos personagens reais da sociedade capitalista. Não se parece nem com os cruéis personagens de Charles Dickens, avaros que exploram crianças, não é um “tycoon” nem um “trader” sentado a frente de várias telas de computador e gritando ordens de compra e venda ao telefone como costumamos imaginar. É mais próximo de um Robinson Crusoe do século XVIII ou de um “hippie” dos anos 70.
A teoria monetária clássica “desenha” um dinheiro que é signo e não mito, ou seja, um dinheiro onde o significante, o valor, não distorce o significado.
O dinheiro é uma medida de valor. Poderia ter qualquer valor, mas tem que ter um valor só. O dinheiro é uma mercadoria – o ouro. A quantidade de ouro é limitada, o ouro é durável e pode ser dividido em unidades de qualquer tamanho. É homogêneo, impessoal e anônimo. E principalmente, natural.
O preço do ouro é igual ao custo marginal de extração. O preço do dinheiro, isto é, o preço médio de todas as coisas expressas em dinheiro é igual ao preço do ouro. Não pode ser manipulado pelo governo de quem os clássicos e liberais desconfiam. Não pode ser politizado. O dinheiro é ouro e o seu valor, natural.
A quantidade de moeda em circulação é determinada pelas entradas e saídas de ouro no país. O país que exporta mais do que importa, recebe ouro pela diferença, aumenta a quantidade de meios de pagamento. O aumento de oferta de meios de pagamentos aumenta o nível geral de preços. Com taxas de câmbio fixas, o preço dos produtos exportáveis e importáveis fica relativamente menor, o país exporta menos e importa mais, e o equilíbrio do balanço comercial se restabelece.
Dinheiro serve apenas como meio de pagamento que facilita as trocas, “viabiliza o funcionamento de uma gigantesca economia de trocas” 51. Dinheiro não é unidade de conta -- os preços são preços relativos, um cafezinho custa um pão com manteiga. O significado não é o valor, mas o valor relativo. O dinheiro não muda preços relativos nem a teoria do valor - os preços são determinados no mercado pelo custo marginal de longo prazo de cada mercadoria. O valor do ouro não modifica os preços relativos - um cafezinho pode custar uma libra ou cem libras de ouro, mas custará sempre a mesma coisa que um pão com manteiga. O dinheiro é um signo - o significado não altera o significante. Não é mito.
O sistema financeiro multiplica as expressões do dinheiro - depósitos, notas bancárias lastreadas em ouro e notas bancários representando apenas crédito fiduciário, sem lastro em ouro. Bancos recebem ouro em depósito e emitem notas bancárias. Nota bancária é dinheiro? Os bancos fazem empréstimos e recebem depósitos. Depósito é dinheiro? Bancos emitem notas bancárias sem o correspondente depósito em ouro. As notas bancárias são dinheiro? O que é o dinheiro - apenas a moeda metálica ou a moeda metálica e outros significantes?
O desenvolvimento do sistema bancário modifica a teoria: no longo prazo, o nível de preços é igual ao custo marginal de produção de ouro. No curto prazo, o nível de preços é dado pela teoria quantitativa da moeda, ou seja, pela proporção entre a quantidade de dinheiro, (igual a quantidade de notas bancárias com lastro em ouro e depósitos a vista) e a quantidade de mercadorias produzidas. No curto prazo, a quantidade de dinheiro em circulação pode ser maior ou menor do que a quantidade de ouro. O nível geral de preços é determinado pela oferta de bens relativamente a demanda. A quantidade de dinheiro em circulação é um estoque (quantidade existente em determinado período de tempo). A quantidade de mercadorias produzidas é um variável fluxo, produção por ano. Se existem 100 moedas de ouro que valem um libra cada, ou seja, 100 libras, em circulação e se a produção nacional é de 1000 libras por ano, o dinheiro circulou, mudou de mãos 10 vezes por ano entre pagamentos e recebimentos.
A velocidade renda de circulação da moeda não é necessàriamente constante. Depende de hábitos de pagamento (mensal, semanal, anual), grau de integração das empresas e outras variáveis que por sua vez são constantes no curto prazo. Pode circular mais ou menos ràpidamente e causar variações de preços. “Coeteris paribus”, isto é, mantidas constantes as variáveis que determinam a velocidade renda de circulação da moeda, o nível de preços é determinado no curto prazo, pela quantidade de dinheiro em circulação. No longo prazo, pelo custo marginal de extração do ouro.
Como controlar a quantidade de dinheiro em circulação ainda que o dinheiro fosse mercadoria como outra qualquer?
O dinheiro projetado pela teoria clássica é sistema de significantes neutros que não modificam a realidade em que são aplicados. Como a língua sonhada pelos positivistas que dá um nome para cada coisa que existe e abomina a metafísica que fala de coisas que não existem. Cada coisa tem um preço que se expressa por dinheiro, mas o preço de cada coisa não é modificado pela forma em que são expressos em dinheiro. Exerce somente a função de meio de pagamento, não é nem unidade de conta nem reserva de valor.
O personagem da teoria clássica não trabalha para ganhar dinheiro. Trabalha para obter mercadorias que atendem as necessidades reais. A produção de mercadorias é idêntica a demanda de mercadorias, ou, nos termos da Lei de Say, a oferta cria sua própria demanda. Quem produziu, produziu para vender e comprar bens e serviços. A soma dos lucros, salários, juros e aluguéis é exatamente igual a soma das despesas de consumo e de investimento. Quem não consumiu, emprestou dinheiro para quem consumiu mais do que ganhou ou investiu. A demanda por bens de serviços é igual a oferta de bens e serviços. O homus oeconomicus clássico não guarda dinheiro como reserva de valor.
A taxa de juros resulta do retorno dos capitais investidos e da poupança, da disposição em não consumir. Se investimentos produzem altas taxas de retorno, a taxa de juros é alta. Se existe pressa em consumir e pouca poupança, a taxa de juros é alta. A taxa de juros é fenômeno real. O dinheiro não altera as taxas de juros.
Ciclos são períodos de variação positiva ou negativa do nível geral de preços causada por descobertas importantes de ouro (Lago Vitória na África e São Francisco nos Estados Unidos).
Dinheiros de diferentes países deviam ser trocados a taxa fixa, dada pela quantidade de ouro existente em cada moeda. Consequentemente, a quantidade de dinheiro em circulação depende do balanço de pagamentos. Superávits comerciais, exportações maiores do que importações aumentam a quantidade de ouro e de dinheiro em circulação. Os ciclos de variação de preços não são acompanhados sincronicamente pela variação dos salários, criando lucros excepcionais quando os preços subiam mais rapidamente que os salários e prejuízos quando caiam. Como conciliar o caráter neutro do dinheiro, que é apenas meio de pagamento e não unidade de contas com a realidade dos salários lentos para se ajustar? A variação do nível geral de preços não deveria afetar a economia se o dinheiro é signo e usado apenas como meio de pagamentos.
Novamente, o tempo resolve a inconsistência: no curto prazo, os preços nominais podem se afastar dos preços relativos. No longo prazo tendem a voltar. O longo prazo é um destino fixo como o nível médio do mar. A tempestade levanta e afunda a proa do navio em ondas gigantescas, mas quando acalma, retorna ao nível médio do mar.
O longo prazo parece ser o dia em que se “encerram” todas as atividades de troca e todo o dinheiro é redimido, trocado por ouro ou mercadorias. Este dia determina o funcionamento da economia no curto prazo, quando pode haver desvios - a quantidade de dinheiro pode ser maior do que a quantidade de ouro e os salários podem ser modificados pela oscilação no preço da moeda.
Os neoclássicos (Marshall, Fisher e Wicksell) de antes da I Grande Guerra completam e resolvem as inconsistências da teoria clássica.
O preço do ouro é determinado pela demanda de dinheiro. O estoque de ouro existente é grande relativamente à quantidade de ouro novo extraído das minas todos os anos. O preço do ouro só é alterado marginalmente pela descoberta de novas jazidas. Depende mais da demanda de dinheiro do que dos custos de extração. A utilização do ouro como dinheiro aumenta a demanda e o preço do ouro. É a demanda de dinheiro que determina o preço do ouro e não o preço do ouro que determina o preço do dinheiro. O preço da forma (do ouro) é determinado pelo seu sentido (o valor) que procurava um preço natural para si mesmo O nível geral de preços é determinado pela quantidade de dinheiro em circulação tanto no curto quanto no longo prazo52
A quantidade de dinheiro não é “natural”. Precisa ser controlada pelo Banco Central. O sistema bancário precisa ser regulado. Para os economistas da Banking School dinheiro deveria ser o crédito criado pelos bancos e não precisava ser conversível em ouro. A quantidade de dinheiro reagia passivamente à demanda. A Currency School defendia a conversibilidade e o controle da emissão de dinheiro. A Currency School é vencedora - o Banco da Inglaterra foi dividido em banco emissor onde as reservas de ouro estariam concentradas e banco comercial, operando como banco comercial comum. 53 Os Country Banks, bancos localizados fora do centro financeiro da City perdem o direito de emissão.
O dinheiro defendido pela Banking School é um dinheiro lastreado em empréstimos utilizados para produzir ou comercializar mercadorias. A quantidade de dinheiro, neste caso, é determinada pelo estado geral dos negócios e pelo nível de produção. O dinheiro proposto pela Currency School é estritamente ligado a quantidade de ouro existente nas reservas bancárias. A quantidade é limitada pela situação do balanço de pagamentos. Paradoxalmente, o dinheiro da Currency School é mito, papel conversível em ouro que tem “valor” enquanto o da Banking School, signo, papel que só tem valor se os créditos concedidos forem bons e pagos.
A necessidade de um “freio” ou de uma “ancora” que fixe o valor do dinheiro, exatamente o que não parece contemplado pela Banking School foi discutida por Wiksell. O equilíbrio do nível geral de preços é indeterminado quando o valor da moeda é dado pelo valor dos bens que a economia produz, pois quando se considera a economia como um agregado, o aumento dos custos das empresas, isto é, aumento de salários representa também um aumento de receitas. Para a economia como um todo o que é custo das empresas, é renda das famílias. Se aumentarem os salários, aumenta a renda das famílias, aumenta a demanda por mercadorias e os preços podem aumentar novamente. O equilíbrio do nível geral de preços, isto é, do preço do dinheiro, é indeterminado como é indeterminado o ponto de equilíbrio de um cilindro que tenha um movimento retilíneo e uniforme sobre uma superfície sem atrito. Para que o “cilindro” chegue a um estado de imobilidade é preciso que haja alguma força, a âncora, que desacelere o movimento até que a velocidade seja nula.
Wicksell apresenta dois modelos de fixação do nível geral de preços. Numa economia que trabalha apenas com moeda (pure cash economy),como proposto pela Currency School, o nível geral de preços é determinado pela quantidade de dinheiro em circulação. Se os empresários decidirem comprar matérias primas e contratar mão de obra e matérias primas em quantidade maior do que a disponível excesso a capacidade da economia, os preços sobem, falta dinheiro e o nível de atividade tem que se reduzir. O nível geral de preços é determinado pela quantidade de dinheiro em circulação.
Na economia que trabalha apenas com crédito, com proposto pela Banking School, a oferta e a demanda total de crédito dependem da taxa de juros. Existe uma taxa de juros “natural” que faz com que a quantidade de crédito seja proporcional à quantidade de produção anual e o nível geral de preços entra em equilíbrio. Juros abaixo da taxa natural criam excesso de crédito e pressão para que o nível geral de preços suba. Juros acima da taxa natural, ao contrário, diminuem o montante de crédito em circulação e o nível geral de preços cai. A teoria neoclássica começa a modificar a taxa de juros. A taxa de juros “natural” é determinada pela poupança e pelo investimento. A taxa de juros de mercado pode no curto prazo, ser diferente da taxa de juros natural.
Dinheiro serve apenas como meio de pagamento ou meio de troca. Preços relativos não são afetados pela quantidade maior ou menor de moeda ou de crédito. Fisher propõe a distinção entre taxa de juros nominal, que inclui a expectativa de inflação e taxas de juros reais, que descontam a variação esperada do nível geral de preços. O mundo real de preços relativos não é afetado pelo mundo aparente de preços nominais.
Os neoclássicos propõem um método tabular para calcular o valor do dinheiro que serve como unidade de conta. O método tabular consiste na indexação dos preços contratados ao nível geral de preços.
No curto prazo, os ciclos de preços afetam a economia, pois os salários são pouco “plásticos” usando a linguagem da época, ou nominalmente rígidos, como falamos atualmente. O desemprego não existe como conceito social e político. Mas preços caindo e subindo geram lucros e prejuízos excepcionais que, entretanto, só duram no curto prazo. Por que os salários são rígidos?
Curto e longo prazo continuam representando o mesmo problema que representavam para os clássicos. O longo prazo é o destino inexorável de diferentes curtos prazos ou o destino desenhado pela sucessão de curtos prazos?
Clássicos e neoclássicos “projetam” um dinheiro que é apenas meio de pagamentos e não unidade de contas ou reserva de valor. Desenham um dinheiro que é signo e não mito. Ao postular que o dinheiro é apenas véu- meio de pagamento- estão reagindo a transformação do signo em mito que resulta do desenvolvimento da indústria, das relações comerciais da Inglaterra com todo o mundo e com o desenvolvimento do mercado financeiro e bancário.
O dinheiro que movimenta a economia inglesa e européia é realmente um mito, a revelia do desejo dos clássicos e neoclássicos - os ciclos de preços afetam a atividade econômica por que os salários são rígidos. Se o dinheiro é apenas meio de pagamento, porque os salários não são plásticos? Ignorância dos trabalhadores, ilusão monetária? Apenas os trabalhadores são vítimas do dinheiro como mito? O dinheiro é um mito da cultura de massas?
O sistema bancário precisa ser regulado para evitar expansão exagerada da oferta de dinheiro e o Banco da Inglaterra precisa redescontar e dar liquidez aos bancos para evitar crises monetárias. Bagehot expressa a regra de ouro do banco central –“é preciso descontar, sempre descontar” para garantir a conversibilidade do dinheiro e evitar crises monetárias. O dinheiro-signo dos clássicos é irreal, o dinheiro real é mito.
Ou o dinheiro é apenas meio de pagamento e as variações do nível geral de preços não causam problema. Ou o dinheiro afeta o valor de produção e o nível de preços é indeterminado. A inconsistência é resolvida pela existência de um longo prazo invariável onde o dinheiro não tem importância, é apenas signo conveniente para operar uma imensa e complexa economia de trocas. A desmistificação do dinheiro pelos clássicos exigiu a mitificação do longo prazo como destino fixo das variações de curto prazo.54

3- O funcionamento do padrão ouro no período anterior a Primeira Grande Guerra. 55

O padrão ouro funcionou bem no período 1870-1914. O comércio internacional cresceu, as crises monetárias e de balanço de pagamentos foram pouco freqüentes. Na maior parte do período as economias inglesa, francesa, alemã e americana passaram por deflações decorrentes da escassez de dinheiro-mercadoria, afetando o emprego e a produção.
Depois de 1918, entretanto, a tentativa de restabelecer o padrão ouro do período anterior a Guerra resultou em instabilidade financeira, crises de inflação na França, hiperinflação na Alemanha, Polônia, Hungria e Tchecoslováquia. A defesa das taxas de câmbio fixa geraram protecionismo através de tarifas e quotas que restringiram o comércio internacional. O período entre guerras é marcado por crises monetárias e restrições ao comércio internacional.
Kindleberger56 atribui o bom funcionamento do padrão ouro ao bom gerenciamento monetário e a liderança do Banco da Inglaterra como potência hegemônica. A Grã Bretanha e o Banco da Inglaterra estavam sempre dispostos a aumentar os empréstimos externos para evitar o desequilíbrio do balanço de pagamentos, evitando a saída de ouro e a redução da oferta de meios de pagamentos. Teria funcionado como emprestador de última instância. Kindleberger batizou esta teoria sobre o funcionamento do padrão ouro como teoria da estabilidade hegemônica.
No período entre guerras, as crises que afetaram a estabilidade monetária de tantos paises e geraram ciclos dolorosos de desemprego que culminaram na Grande Recessão de 1930 é atribuída a desobediência as regras do padrão ouro e às desvalorizações cambiais competitivas acompanhadas por protecionismo.
Eichengreeen desafia o argumento. O funcionamento suave do sistema do padrão ouro se baseia em dois pilares: credibilidade e cooperação.
O sistema de padrão ouro funcionou bem por que havia credibilidade no compromisso dos bancos centrais em manter taxa cambial fixa e conversibilidade das moedas nacionais em ouro. Credibilidade é acreditar em alguma coisa sem comprovação ou até que se exija a comprovação.
De acordo com os princípios do padrão ouro, paises com déficit deveriam remeter ouro para o exterior e diminuir a quantidade de dinheiro em circulação. O que provocaria deflação e consequentemente desemprego dado o caráter não plástico dos salários. Paises com superávit no balanço de pagamentos deveriam receber ouro do exterior, ampliar a oferta de meios de pagamentos e passar por inflação.
Enquanto paises com déficits no balanço de pagamentos são obrigados a reduzir a oferta de meios de pagamentos, paises com superávit podem evitar a expansão monetária e a inflação acumulando reservas e evitando a expansão monetária. O ajuste tende a ser assimétrico, exigindo deflação maior do país deficitário porque não é acompanhada de inflação pelos países superavitários.
A política monetária dos bancos centrais inglês, alemão e francês reduzia a amplitude deste tipo de ajuste através da administração das taxas de juros. No caso de déficits menores e temporários, o pai deficitário aumentava as taxas de juros e os paises superavitários reduziam as taxas de juros, através de uma cooperação tácita entre os bancos centrais. No caso de déficits mais severos ou permanentes, havia cooperação explicita entre os bancos centrais que manipulavam as taxas de juros de forma a ampliar a oferta de empréstimos externos para o paií deficitário.
A confiança na manutenção desta política que garantia a conversibilidade e as taxas de câmbio fixa reduzia a necessidade de empréstimos. Pois os capitais privados se dirigiam ràpidamente para os paises deficitários na certeza de que poderiam auferir taxas de juros maiores sem risco de desvalorização cambial ou ameaça de inconversibilidade. A credibilidade no compromisso de manutenção de taxas cambiais fixas promovia um movimento especulativo estabilizador, isto é, que dirigia os fluxos de capitais para o país com déficit de balanço de pagamentos.
Nenhum banco central isolado conseguiria administrar as taxas de juros de forma a reequilibrar o balanço de pagamentos sem a cooperação tácita ou explicita de outros bancos centrais. O Banco da Inglaterra tinha liderança natural sobre os demais bancos centrais, mas não prescindia da cooperação dos outros bancos centrais para alterar taxas de juros e atrair capitais necessários ao reequilibrio do balanço de pagamentos.
A cooperação era possível entre bancos centrais era possível porque as autoridades monetárias dos paises envolvidos compartilhavam do mesmo esquema conceitual e da mesma experiência favorável com o funcionamento do padrão ouro.
A fixação das taxas de juros em função da situação do balanço de pagamentos alterava o nível de emprego e salários diretamente. Entretanto, o trabalho era pouco sindicalizado e não havia consciência política da ligação entre balanço de pagamentos e nível de emprego nacional. O desempregado era chamado de “sem trabalho” nos Estados Unidos, vagabundo, andarilho (“cheminot”) ou destituído nos paises da Europa. O desemprego era problema individual decorrente de falta de energia disciplina ou depressão.
A situação não pode ser exagerada. Havia movimentos sindicais e crise social,mas sempre que o banco central precisasse escolher entre o equilíbrio externo e o emprego doméstico, não precisava hesitar e priorizava o equilibrio externo.
As contas fiscais eram equilibradas e não existiam déficits fiscais. As receitas tributárias eram baseadas principalmente em tarifas aduaneiras e impostos de importação, não havendo impostos sobre a renda ou a propriedade. Não havia conflito sobre a distribuição da carga tributária. A cooperação entre bancos centrais era possível.
Credibilidade e cooperação, portanto, garantiram o funcionamento suave do padrão ouro no período 1870 –1914.
Mas o funcionamento do padrão ouro era diferente do funcionamento previsto pela teoria do padrão ouro. A confiança nos dinheiros nacionais que se baseava na conversibilidade destes dinheiros em ouro era mantida pela política monetária que evitava desequilíbrios e o teste de comprovação, isto é, a conversibilidade do dinheiro em ouro.
O padrão ouro real funcionava suavemente por que todos acreditavam que o padrão ouro teórico era a melhor forma de organizar o sistema monetário. A “crença” fornecia “crédito” para o pais deficitário por parte do país superavitário e cooperação entre os bancos centrais que compartilhavam da mesma fé.
O padrão ouro, isto é, a conversibilidade do dinheiro nacional em ouro, funcionava porque os agentes econômicos acreditavam que a moeda podia ser convertida em ouro e os bancos centrais manipulavam as taxas de juros de forma a evitar que o teste de conversibilidade fosse aplicado.
A administração desta política era possível graças a uma constelação política que garantia equilíbrio fiscal, por um lado e a ignorância social das relações entre este a política monetária e o nível de emprego e salário dos trabalhadores. O padrão ouro é um mito, “uma história que não requer comprovação”, uma crença compartilhada na essência de um dinheiro que não existe.
O regime do padrão ouro não é uma farsa. A essência do regime é administrar a política monetária em função do balanço de pagamentos e é assim que o padrão ouro funcionava. Mas a política monetária era administrada e não automática como propunham os seus defensores. Da mesma forma, o dinheiro era conversível em ouro, mas a conversibilidade era potencial e não real. A política monetária administrava taxas de juros para evitar que o teste de conversibilidade fosse levado ao limite. O nível geral de preços das diversas economias oscilava em função do balanço de pagamentos. Mas a política monetária evitava a amplitude destas variações e seus efeitos sobre a produção e o emprego. Nos mitos, a essência tem precedência sobre a existência. 57
A Primeira Grande Guerra e destrói os dois eixos que garantiram o sucesso anterior: credibilidade e cooperação.
Os diversos participantes da Primeira Guerra passam a ter desequilíbrios fiscais decorrentes das despesas de guerra e a definição da carga tributária baseada em novos impostos reabre o debate político sobre o financiamento das despesas públicas.
O sindicalismo que se amplia durante a Primeira Guerra por iniciativa dos diferentes governos para controlar a agitação trabalhista durante o conflito, transforma o desemprego em questão política e constrange a ação dos bancos centrais.
A estrutura de endividamento se modifica: os Aliados passam a ser devedores dos Estados Unidos que havia fornecido empréstimos durante a guerra e credores da Alemanha a quem foram impostos os pagamentos de reparação.
Os diferentes bancos centrais europeus e o americano deixam de compartilhar das mesmas estruturas conceituais e estão relacionados por créditos e dívidas que impedem a cooperação. A encenação do padrão ouro não é mais possível.
A credibilidade na manutenção das taxas cambiais fixas e na conversibilidade do dinheiro em ouro fica ameaçada pela questão política interna do desemprego. O mito não é adequado a nova realidade e se transforma em estorvo.

4- A economia mundial após a Primeira Grande Guerra: a impossibilidade de manter a farsa.

A primeira Grande Guerra resulta tanto do expansionismo da Alemanha no Oriente Próximo quanto dos conflitos eslavo-germânicos nos Bálcãs. De um lado estão a Alemanha, o Império Austro-Húngaro, a Turquia, a Bulgária e de outro a França, a Sérvia, o Japão,a Itália, a România e Portugal a quem se juntam mais tarde os Estados Unidos, a Grécia, a China e muitos estados da América do Sul.
Tem início com o assassinato do arquiduque herdeiro do Império Austro Húngaro em Saravejo e termina com a assinatura do Tratado de Versalhes que impõe pesados pagamentos de reparação a Alemanha.. O Tratado de Versalhes é assinado em um vagão de trem estacionado em Versalhes vingando o tratado de paz anterior, assinado entre a Prússia vitoriosa e a França derrotada em 1871. Os pagamentos de reparação fixados pelos Aliados vitoriosos são exorbitantes e dão origem a instabilidade financeira permanente na Alemanha derrotada que passa por dramática crise de hiperinflação em 1923. 58
O mapa da Europa modifica-se dramaticamente- o Império austro-húngaro desmembra-se em diversos países- Áustria, Hungria, Tchecoslováquia, Sérvia e Montenegro. Os paises derrotados, que pertencem á área de influência do marco alemão, vivem crises de hiperinflação nos anos 20. A França acumula dívidas de guerra com os Estados Unidos e têm créditos vultosos contra a Alemanha gerados pelo Acordo de Versalhes.
O mundo pacificado se reúne sob a Liga das Nações, a nível político e funda o Banco da Basiléia com o objetivo de regular as relações financeiras internacionais. A doutrina econômica proposta é simples: cada país deveria restabelecer as paridades cambiais de antes da Grande Guerra, corrigindo as taxas cambiais pela inflação ocorrida no período. O restabelecimento de taxas cambiais permitiria a reinstituição do padrão ouro, modificado agora pela possibilidade de utilizar em maior escala, moedas conversíveis em ouro como se fossem reservas de ouro. Assim, por exemplo,as reservas em dinheiro austríaco seriam consideradas reservas em ouro se este dinheiro mantivesse política adequada de reservas. O mundo deve recuperar a prosperidade anterior a Grande Guerra reconstruindo o regime monetário anterior.
A correção das taxas cambiais pela inflação supõe que a inflação ou a deflação são fenômenos neutros, isto é, que alteram o valor da moeda mas não alteram os preços relativos. O dinheiro é apenas um véu, meio de pagamento ou de troca, que não muda preços relativos, isto é, que não exerce o papel de unidade de conta. Como o dinheiro não é visto como reserva de valor, isto é, ativo financeiro, o seu preço depende apenas dos preços das mercadorias que pode comprar.
A tentativa de reconstrução do padrão ouro no período entre guerras criou instabilidade monetária em diversos países, protecionismo e redução dos fluxos comerciais, desvalorizações cambiais que culminaram com a crise da Bolsa de Nova York e um longo período de depressão que dura de 1930 até o início da Segunda Guerra em 1939.
Por que o padrão ouro não funcionou suavemente depois da Guerra de 14 e como as crises monetárias do período entre guerras culminaram com a grande depressão de 1930 que se estende até o início da Segunda Guerra Mundial?
A Primeira Guerra Mundial fortaleceu o balanço comercial e o balanço de capitais dos Estados Unidos e enfraqueceu o das outras nações. Os Estados Unidos se tornaram grande exportador de produtos agrícolas e industriais e credor dos países da Europa por conta de despesas da guerra. A América Latina precisava de empréstimos para compensar a queda de preços dos produtos que exportava e apenas os Estados Unidos poderia reciclar os superávits comerciais e os créditos que recebia para financiar estes paises. Se os empréstimos americanos fossem interrompidos, o balanço de pagamentos dos países europeu mantido graças ao fluxo de empréstimos americanos ficaria desequilibrado. Conforme perdessem ouro e reservas em moeda estrangeira a conversibilidade das moedas européias seria ameaçada.
No início, o financiamento do comércio internacional funcionou suavemente com generosos empréstimos americanos. A Alemanha e as novas nações da Europa Oriental receberam empréstimos que permitiram o restabelecimento das taxas cambiais do período anterior a guerra e permitiram combater a hiperinflação. A Inglaterra restabelece a paridade cambial do pré-guerra sem grandes dificuldades.
A política de crédito acomodatícia dos Estados Unidos é mal vista no país, sendo responsabilizada pelo crescimento excessivo dos preços das ações na Bolsa de Nova York. Em 1928 o Federal Reserve adota política monetária restritiva infelizmente coincide com o mesmo movimento restritivo por parte do Banco da França. França e Estados Unidos drenam ouro dos outros países.
Juros americanos crescentes cortam os empréstimos externos e no verão de 28 , os paises da Europa adotam igualmente políticas restritiva para defender a paridade do ouro e os pagamentos das dividas. O serviço da dívida era mantido na expectativa de acesso futuro ao mercado financeiro internacional.
O aumento das taxas de juros acaba por gerar o Crash da Bolsa de Nova York que é seguido por grande depressão nos Estados Unidos e no resto do mundo. O comércio internacional se reduz pela falta de liquidez, pelas medidas contracionistas adotadas para defender as taxas cambiais fixas e a conversibilidade e por medidas protecionistas. O protecionismo agrava o problema dos países da América Latina onde em 1931 muitos paises entram em default. Em 1932, é a vez da Europa Central e em 1933, a Alemanha. A suspensão dos pagamentos de dívida externa acaba por agravar a situação do balanço de pagamentos da Inglaterra que dependia muito destes pagamentos para manter o equilíbrio das contas externas, criando a crise da libra esterlina em 1931.
A grande recessão que se inicia nos Estados Unidos a partir dos anos 30 é um grande mistério. Não há consenso sobre as causas. O aperto da política monetária em 28 e 29 é apenas o deflagrador da crise através da derrubada no preço das ações. A recessão pode ser explicada por desequilíbrios na indústria de automóvel? Ou pelo efeito perda de riqueza que acompanha a desvalorização das ações na Bolsa?
O debate não tem solução. Mas a recessão que se inicia nos Estados Unidos já afetava anteriormente a Europa. As exportações americanas já mostravam sinais de declínio antes da queda da produção industrial que se inicia mais tarde. Por isto, a virada da economia foi tão severa - não havia como desviar a produção do mercado doméstico para o internacional.
Portanto, a depressão não se explica apenas pela política monetária restritiva americana, mas principalmente pelo sistema do padrão ouro que transmitia os efeitos desta política restritiva a todos os países do mundo, gerando medidas contracionistas que ampliavam os efeitos iniciais. Por outro lado, o Federal Reserve não reagiam a melhoria do balanço de pagamentos afrouxando a política monetária enquanto o boom da bolsa continuava. O Fed aumentava as taxas de juros, em vez de diminuí-las.
Nada disto, entretanto é suficiente para explicar por que os demais paises não afrouxavam a política monetária e fiscal. A explicação está na manutenção do regime do padrão ouro: enquanto as taxas cambiais e a conversibilidade eram mantidas, a política fiscal e a monetária tinham que ser restritivas. A Inglaterra tentou adotar políticas expansionistas em 1930, os Estados Unidos em 1931-33, a Bélgica em 34 e a França em 34-35. Todas tiveram que voltar atrás, face à perda de reservas e a ameaça sobre a conversibilidade de suas moedas. Portanto, mesmo os Estados Unidos e a França, paises lideres em termos de reservas de ouro não conseguiam adotar políticas expansionistas enquanto o regime do padrão ouro estivesse em vigor a menos que adotasse políticas expansionistas ao mesmo tempo, o que exigiria cooperação internacional.
Aconteceram encontros internacionais como a Conferencia Econômica de Londres em 1933. Mas questão das dividas de guerra, ainda sem solução, complicavam as negociações. E as autoridades monetárias tinham visões diferentes sobre o problema e a solução. Os franceses temiam a inflação porque haviam passado por inflação de dois dígitos em 1926 e atribuíam a inflação a políticas expansionistas em desobediência as regras do padrão ouro. Os ingleses percebiam a recessão como resultada das altas taxas de juros. Os americanos pensavam como os franceses enquanto Hoover era o presidente, e como os ingleses, quando Franklin Delano Roosevelt assumiu a presidência.
A grande recessão de 1930 iniciou-se, portanto, com a mudança da política monetária americana nos anos 28-30. Mas o que a propagou pelo resto do mundo foi o regime do padrão ouro, isto é, a manutenção de taxas cambiais fixas e conversibilidade das moedas nacionais em ouro.
As falências bancárias levavam a liquidação de depósitos bancários sem que os bancos centrais pudessem fazer empréstimos aos bancos domésticos, pois as defesas da taxa cambial e das reservas impediam políticas expansionistas. Quando os depósitos bancários estrangeiros eram importantes o problema se tornava mais grave. Bancos alemães mantinham depósitos em Viena e bancos austríacos, na Alemanha. Quando os bancos austríacos entram em falência, o efeito se propaga para a Alemanha, mas o Reichsbank não pode oferecer empréstimos de liquidez por que está impedido de fazê-lo pelos acordos da dívida externa e pela obrigação de manter 40% da oferta de meios de pagamento garantida pelo ouro. A crise bancária austríaca se propaga para a Alemanha, Hungria e outros países da Europa Central.
O mesmo tipo de crise ocorre nos Estados Unidos em 33 e na Bélgica em 1934. Dinamarca e Suécia fora do padrão ouro desde 1931 tinham liberdade para agir. O padrão ouro não era garantia mais de estabilidade, mas ao contrário, o maior empecilho para a manutenção da estabilidade.
No período entre guerras, os bancos centrais poderiam manter como reserva equivalente ao ouro, moedas de outros países que fizessem parte do sistema do padrão ouro. Assim, qualquer mudança nas taxas cambiais ou nas regras de conversibilidade de uma moeda afetava imediatamente a posição de reservas de todos os bancos centrais e exigia medidas monetárias restritivas.
A partir do momento em que a política monetária dos Estados Unidos deixa de ter como objetivo o equilíbrio do balanço de pagamentos das economias mais importantes do mundo, o regime do padrão ouro entra em crise.
O padrão ouro pode funcionar suavemente apenas quando a política monetária de todos os paises funcionava harmonicamente tendo como objetivo garantir o equilíbrio do balanço de pagamentos. A elevação dos preços da Bolsa de Nova York é o deflagrador do movimento desarmônico da política monetária americana, o pais mais importante em termos de superávits comerciais e de fluxos de capital. Este é o movimento deflagrador da crise.
A difusão da crise e a sua duração decorrem da tentativa de manutenção do regime quando ele não era mais viável, porque não contava mais com a credibilidade e a cooperação dos paises mais importantes da Europa e dos Estados Unidos.
Os bancos centrais não podiam mais colaborar entre si na administração de taxas de juros. Em parte, por que as tentativas de cooperação explícita eram impossíveis devido a nova estrutura de endividamento entre estes paises e particularmente pela imensa dívida de pagamentos de reparação da Alemanha. Em parte, por que alguns bancos centrais, como o Banco da França estavam impossibilitados, de realizar acordos de cooperação depois que um novo estatuto desenhado para protegê-lo de pressões políticas proibia esta cooperação.
Finalmente, por que compartilhavam de visões conceituais diferentes sobre o problema monetário. Enquanto a França e Alemanha tinham tido experiência dolorosa com a inflação que atribuíam ao abandono do padrão ouro e ao crescimento da oferta de meios de pagamentos, Estados Unidos e Inglaterra , passavam por período de desemprego que atribuíam a restrição de crédito e a manutenção do regime do padrão ouro. A cooperação se tornara impossível.
A tentativa de defender taxas cambiais fixas e conversibilidade na ausência de cooperação e credibilidade nas políticas acabou por gerar medidas protecionistas através de tarifas e desvalorizações cambiais competitivas (a política de “beggar thy neighbor”) que reduziram o comércio internacional agravando ainda mais o desemprego nos diversos países. Foram estas medidas protecionistas e desvalorizações cambiais que inspiraram o diagnóstico freqüente segundo o qual a desobediência ao regime do padrão ouro havia prolongado e difundido a crise de desemprego. Na realidade, estas medidas se tornaram necessárias por causa da insistência em manter o regime de taxas cambiais fixas.
A política monetária também era limitada pela manutenção de taxas cambiais fixas e conversibilidade. A tentativa de acudir bancos insolventes gerava saídas de capital que obrigavam a suspensão do auxílio. Assim, falências bancárias se multiplicavam contraindo a oferta de crédito e de meios de pagamentos. O caso do Credianstalt, o mais famoso, ilustra bem o problema. Em 1931 o banco austríaco enfrenta dificuldades e entra em falência. As autoridades monetárias austríacas não podem auxiliá-lo porque a expansão monetária geraria, imediatamente, fuga de capitais e ameaça de desvalorização cambial. A falência deste banco gera crise monetária na Alemanha já que muitos alemães e bancos alemães tinham depósitos no banco austríaco. A Alemanha, por sua vez, não pode auxiliar os bancos alemães em dificuldades por causa do regime do padrão ouro e por restrições sobre a relação meios de pagamento - reservas em ouro impostas pelos Aliados como parte do acordo de paz de 1918.
A política fiscal, da mesma forma, estava impossibilitada de agir pelas regras de equilíbrio fiscal e pelo próprio regime do padrão ouro. A expansão monetária decorrente de desequilíbrios fiscais ameaçava ainda mais a estabilidade da taxa de câmbio e geraria saídas de ouro do país que experimentasse política fiscal expansionista.
O regime do padrão ouro, definido como um regime de moedas conversíveis em ouro a preços fixos era na realidade um regime de dinheiro fiduciário, isto é, dependente de fiducia, confiança na sua conversibilidade a taxas cambiais fixas. Esta confiança só podia ser mantida através da administração coordenada das taxas de juros que distribuíam crédito para os países com desequilíbrios no balanço de pagamentos, evitando o teste da conversibilidade. Sem crédito coordenado pela cooperação, o teste de confiança mostrou a realidade - as moedas não podiam ser convertidas a taxas fixas entre si e não eram lastreadas em ouro.
Em 1933(?) o presidente Franklin Delano Roosevelt desvaloriza a moeda americana e sai do padrão ouro.
Antes, a Bélgica havia desvalorizado a sua moeda e suspendido a conversibilidade. Ao mesmo tempo, expandiu o crédito interno. A economia doméstica da Bélgica se expandiu com nível geral de preços crescente. A desvalorização não ampliou as exportações porque a taxa cambial não se desvalorizou em termos reais devido a inflação interna.
Na Tchecoslováquia, a desvalorização cambial não foi acompanhada de expansão do crédito interno. As exportações aumentaram assim como as reservas, permitindo a expansão do crédito interno. Produção e emprego cresceram mais lentamente. A Inglaterra ficou entre estes dois casos extremos. A França desvalorizou e cortou credito domestico que neutralizaram beneficio da desvalorização.
Estava determinado o fim do padrão ouro. A expansão foi lenta e as desvalorizações cambiais descoordenadas. O “ethos” do padrão ouro impediu que as autoridades monetárias desvalorizassem ou expandissem o crédito mais ràpidamente, pois os agentes econômicos reagiriam, acostumados com a cultura do padrão ouro, com movimentações de capital ou receio de inflação. A política monetária é condicionada pelas crenças e hábitos da economia sobre as práticas consideradas corretas e as expectativas conceituais decorrentes de cada medida. O “ethos” do padrão ouro é responsável pela lentidão das reações da política monetária e, consequentemente, pela duração maior do desemprego. Ao mesmo tempo em que a economia passava por longa deflação, muitos países evitavam desvalorizar ou ampliar o crédito, com receio da inflação que haviam experimentado em períodos anteriores.